O inventor solitário e o lápis de cor

Correio Braziliense

Brasília, quarta-feira,

27 de fevereiro de 2002

Lucio Costa 100 anos

O inventor solitário e o lápis de cor

Conceição  Freitas

Ele trabalhou sozinho, durante pouco mais de três meses, até achar o ponto certo para o projeto de brasília: uma cidade moderna, com influências francesas, inglesas, norte-americanas e da tradição colonial mineira.

Trancado em si mesmo, Lucio Costa precisou de um pouco mais de três meses para criar um novo mundo - ilhado nas próprias idéias, não as dividiu com ninguém. Parte desse tempo, 12 dias, passou a bordo de um navio em viagem de volta dos Estados Unidos. Quando deu por concluída a invenção, chamou a filha estudante de arquitetura e a ela expôs seu projeto do Plano Piloto de Brasília. Estavam no apartamento da avenida Delfim Moreira, no Leblon, primeiro prédio de pilotis erguido no Rio de Janeiro. Lucio Costa parecia estar diante do júri oficial do concurso, tal o empenho com que explicava seu projeto de 23 pontos. ''Quando terminou, estava molhado de suor'', lembra Maria Elisa Costa, 45 anos depois daquele fevereiro de 1957. Ela desfaz a lenda de que o projeto nasceu da noite para o dia. ''Ele foi tomado pela idéia, mas a idéia foi trabalhada, pensada, estudada, sem barulho''.

Dias depois, 11 de março, a filha do inventor desceu às pressas de um velho Citröen, enquanto o pai a esperava no carro, rente à calçada do prédio do então Ministério da Educação e Saúde Pública, no centro do Rio. Faltavam dez minutos para o encerramento do prazo de entrega dos projetos do concurso do Plano Piloto. A moça subiu ao saguão do Ministério, entregou o projeto, apanhou o recibo e foi embora.

Àquela hora, quatro dos seis membros do júri estavam lá, ansiosos por saber quem mais apresentaria projeto - 63 candidatos haviam se inscrito, mas a confirmação se daria com a entrega da proposta. O grupo era formado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, os urbanistas William Holford (inglês) e André Sive (francês) e o arquiteto americano Stamo Papadaki. Com eles, o arquiteto e crítico de arte Flávio de Aquino (morto em 1987), à época assistente de Niemeyer. O que viram foi, de início, constrangedor. Lucio Costa já era, à época, um dos grandes da arquitetura brasileira. Mas os rabiscos toscos feitos a lápis de cor, pequenos desenhos a nanquim e um texto batido a máquina pareciam brincadeira de criança diante de maquetes, croquis, quadros de alumínio - recursos sofisticados que compunham os projetos já entregues.

Uma semana depois, sob protesto do representante do Instituto dos Arquitetos do Brasil, Paulo Antunes Ribeiro (que queria transferir a decisão para uma comissão de notáveis), o júri consagrou o mais mal-apresentado dos projetos. O inglês Holford, presidente do júri, diria mais tarde a Lucio Costa: ''Li o seu trabalho três vezes. Na primeira, confesso que mesmo socorrido do meu espanhol e do meu francês, não consegui entender realmente tudo o que estava dito. Na segunda leitura, consegui entender. Na terceira, I enjoyed it (algo como 'deleitei-me', 'fiquei encantado')''. Foi no pequeno terraço interno do prédio do Leblon - de onde, num esticar de pescoço, se pode ver o mar - e flutuando sobre o Oceano Atlântico que Lucio Costa deu ânimo a uma cidade. Mas Brasília, vejam só, tem influências francesas, inglesas, norte-americanas e mineiras. O próprio Lucio escreveu, em texto pouco conhecido, que ''inconsciente embora, a lembrança amorosa de Paris esteve sempre presente'' durante a invenção da nova capital.

Há também rastros dos ''imensos gramados ingleses, os lawns da minha meninice, - é daí que os verdes de Brasília provêm''. Entre a decisão de se inscrever, tomada só três meses depois de aberto o prazo, e a entrega do projeto, Lucio Costa foi aos Estados Unidos. Percorreu auto-estradas e viadutos de travessia nos arredores de Nova York - daí pode-se deduzir que o Eixão e as Estradas Parque são filhas das autopistas nova-iorquinas. Por fim, o urbanista deixou-se levar também pela ''pureza da distante Diamantina'' que o arquiteto visitou nos anos 20 e o marcou para sempre.

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