MEUS FLANELINHAS

Publicado no Diário de Pernambuco, 3/04/2003, p.A-3:

Tereza Halliday

Jornalista e analista de discurso

Sou obrigada a dirigir automóvel em vez de pedalar,  porque a cidade não está à altura da civilização da bicicleta como meio de transporte seguro. Ciclista frustrada de fazer dó,  motorista a contra-gosto,  enfrento diariamente meus flanelinhas. Detesto o serviço impingido, mas os trato com bom humor e cortesia. Bom dia, boa tarde, até logo. Se, nos coquetéis da vida, cumprimento educadamente  certos super-assalariados de reputação duvidosa, como não ser cortês também com sub-empregados de reputação inequívoca - artistas da sobrevivência,  na farsa do "Deixe que eu tomo conta"?

O primeiro sustenta a família há 30 anos, como guardador de carros.   A segunda, corre pra lá e prá cá, de gorrro, suarenta e prestativa. O terceiro, jovem, sorridente e desdentado, além de "administrar" as vagas do quarteirão,   presta serviços de lavagem de carro, com agua semi-límpida e molambo semi-limpo -  como diria seu hipotético marqueteiro   A quarta, de cabelos brancos, estende o papelão sobre o pára-brisa  do meu carro  e recolhe na pochete encardida o meu CPVE  - contribuição permanente de vagas de estacionamento. A ocupação tornou-se unissex.

Com meu quinto flanelinha, mantenho um relacionamento  diplomático antigo, fornecendo-lhe, além do real de praxe, o trocado do peixe  - na Semana Santa,  do milho - no S.João,  e as festas de Natal.  É um bom rapaz. Atua nas imediações da casa de minha mãe, dela descola um almoço por semana e se faz de protetor, acompanhando-a quarteirão a fora, quando a encontra: "Comigo aqui ninguém mexe com a senhora". Pidão em demasia, cobra sistematicamente presentes e itens de consumo. Quando posso, me escondo dele, indo estacionar bem longe. Mas aí, um concorrente seu encosta. Troquei seis por meia dúzia.

Com os flanelinhas desconhecidos, pago adiantado para livrar-me de vê-los por perto, ao voltar, pois geralmente somem depois de embolsar o trocado.  Surpresos,  agradecem e se desdobram na gesticulação do pretenso serviço de guardador e peru de manobra. Na chegada,  pergunto: "É você, o dono do pedaço?" ou "Esta calçada é a sua?".   Respondem que sim.

        

Sempre que possível, vou a pé a banco, xerox, manicure, levar coisas para consertar, almoço com amigos ou clientes. Sem carro, livro-me de encenar a interação forçada com os flanelinhas onipresentes, escapo de ouvir, a cada estacionamento, os bordões:  pode deixar, Doutora e Tia.  A pé, descanso um pouco da cobrança injusta dessa prestação adicional  da dívida social que não contraí,  com esses cidadãos desprotegidos, pelos quais já pago muitos impostos.

Andarilha de carteirinha, agrada-me caminhar em vez de dirigir carro e assim,  poder usar a rua sem o assédio de flanelinhas.  Mas com muito cuidado para não tropeçar nas calçadas desniveladas, esburacadas e decoradas com titica de cachorro - outras imposições de uma sociedade destrambelhada.   terezahalliday@hotmail.com