SUPLÍCIO DO SOM

Publicado no Diário de Pernambuco, 15/05/2003, p.A-3:

SUPLÍCIO DO SOM

Tereza Halliday

Jornalista e analista de discurso

Sou parte de um grupo de cidadãos que sentem cada vez mais dificuldade em curtir lazer fora de casa ou participar de eventos familiares e sociais. Somos vítimas do suplício do som.    Nossa presença nessas ocasiões festivas nos causa dor localizada e um desconforto tão grande que, para escapar do mal, comparecemos cada vez menos a locais que teríamos gosto em freqüentar, se a música seduzisse em vez de estuprar.

Como temos audição normal, somos incapazes de sentir prazer e bem-estar no convívio com  a violência do alto índice de  decibéis  em cinemas, academias de ginástica, restaurantes, calçadas com carros estacionados e sonorizados em volume desbragado, igrejas, bares, festas de aniversário, casamento e outras comemorações - com ou sem dança. Nossa proficiência auditiva nos torna deficientes sociais porque deixamos de circular para evitar as dores: doem os ouvidos e o corpo, com as vibrações patogênicas do excesso de som.

Em lugares onde a música deveria ser de fundo, é "de frente": invade os espaços de conversa,  irrita a garganta pelo esforço de se fazer ouvir, impede de escutar o outro e nos expele do local em vez de cativar.  Lugares onde buscamos momentos de descontração e saimos de lá mais estressados. Disse-me um azucrinado:  "Depois que a tecnologia disponibilizou um mundo de pitocos pra descontrolar o som, as oiça sifu."

Desconfio que nós, de nervos auditivos sãos,  já somos minoria,  a julgar pela naturalidade com que a maioria das pessoas fica nos espaços super-sonorizados.  Isto pode indicar um problema de surdez,  em diversos gráus. Provavelmente, foram vitimizadas por anos de heavy metal,  trios elétricos, caixas de som potentíssimas  e mal-usadas como pretenso auxílio ao lazer. São deficientes auditivos sem admití-lo.  Por isso, não acham nada demais a zoeira das festas e eventos. Para tais pessoas, a música não está tão alta assim. Ou então aprenderam, desde pequenas, já nas ruidosas festinhas de primeiro aniversário, que "para ter animação tem de ser um barulhão".

Adoro música instrumental ou cantada.  Meu equipamento auditivo capta melodias e cadências, sem precisar aumentar o som. Logo  me animo e bato o compasso com o pé.  Quando o volume da música  no supermercado é suportável por meus ouvidos sadios, eu me demoro e deslizo alegremente pelos corredores, como se dançasse. Quando os alto-falantes da loja estão programados para os clientes surdos, vou embora correndo e deixo de comprar.

  Custa muito a quem tem ouvido normal conviver em lugares de compras, lazer ou comemorações, com parentes, amigos e desconhecidos, de todas as idades, que precisam do som altíssimo para ouvir e ter prazer. E, mesmo se não são moucos, valorizam  barulho ensurdecedor  como narcótico ou indicador de alegria.   Torturados pelo excesso de som, formamos uma minoria sem defensores nem direitos reconhecidos.

terezahalliday@hotmail.com